“Assim, quantas vezes, desperto e abandonado, não entrei pela noite dentro, aguardando não bem a madrugada nem o meu sono final, mas o vazio absoluto de um nunca mais para o passado e para o futuro.”

Vergílio Ferreira

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“Inventávamos o futuro para ainda haver futuro quando o não houvesse e a vida lhe pertencia.”


“- Também fiz outra experiência, senhor doutor.- Que experiência?- Bem ... Não sei como explicar. É assim mastigar as palavras.- Mastigar as palavras?- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra” muitas vezes e depois pedra já não quer dizer nada.Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que vive em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?”


“Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E, abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. À luz da lua, espreitei para a casota, chamei o cão. Mondego não respondeu. Meti a mão dentro - o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego!Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão, enfim: suspenso de uma trave enforcado no arame, Mondego recortava-se contra o céu, iluminado de lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me. Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente: quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave o seu corpo leproso, banhado de luar...No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe fosse uma voz de aliança.”


“Porque a vida de quem amamos não é só a que lá está mas a que nós lá pusemos para depois irmos gastando. Ainda agora, vê tu. Amar-te ainda na memória difícil. (...) Recuperar o impossível de quando te amei e não de quando o amor se possibilitou. Porque o inacreditável é que se ama, querida, e não o que é real, que diabo me importa agora o que é real? O real é estares morta, mesmo o real não o sei pensar.”


“- Quando foi da sementeira, o patrão Arnaldo disse-me: «Ó Bailote, tu já não tens a mesma mão para semear.» Porque eu, senhor doutor, tive sempre uma mão funda, assim grande, como um cocho de cortiça. Eu metia a mão ao saco e vinha cheia de semente. Atirava-a à terra e semeava uma jeira num ar.Conta, bom homem, conta o teu sonho perdido. Tinhas, pois, uma boa mão de semeador bíblico. Atiravas a semente e a vida nascia a teus pés. Eras senhor da criação e o universo cumpria-se no teu gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a face escurecida dos séculos, os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o outrora dominando a planície com a sua mão poderosa. A terra abria-se à sua passagem como à passagem de um deus. A terra conhecia-o seu irmão como à chuva e ao sol […].E mostrava a sua desgraçada mão, envelhecida, carbonizada de anos e soalheira. […]- Olhe. Faça ginástica aos dedos. Assim.E exemplificava. De olhos escorraçados, o homem lamentou-se:- Tenho feito, senhor doutor. Mas o patrão Arnaldo diz que eu já não tenho mão. Veja, senhor doutor, então isto não será ainda uma mão de homem? […]- Então que quer que eu lhe faça?- Dê-me um remédio, senhor doutor. Um remédio que me ponha a mão como a tinha. Assim grande, assim funda, assim…E moldava no ar a capacidade de uma mão de Jeová. Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os campos repousavam no grande e plácido Outono. E pelo vasto céu azul, sem a mancha de uma nuvem, ecoava levemente a memória de Verão. Moura pôs o motor a trabalhar.- Então passe muito bem – disse ao semeador.E o carro arrancou, erguendo o pó do caminho.Mas a visita à doente foi breve. […] Regressámos enfim pelo mesmo caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou-nos à frente um grupo de pessoas […]. Moura saiu do carro e o magote de gente seguiu-o. Fiquei só. Mas o médico regressava daí a pouco, pálido, transtornado.- Que aconteceu?Ele não respondeu logo, conduzindo o carro aos tropeções. E só quando o monte se não via já me declarou:- O homem enforcou-se.”


“Estava eu a dizer ao António que o cão não passa este inverno - declarou meu pai - para ele era uma sorte se morresse.- Não morre! - disse eu, aflito.Mas Tomás aproximara-se também:Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.Não havia ali, porém, uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa?”