“Aproximou-se certo dia de uma fonte clara como prata e não contaminada pelo gado, pelo pássaros, pelas feras nem pelos ramos caídos das arvores próximas. Narciso, sentando-se, exausto, na margem daquela fonte, logo se enamorou de sua própria imagem. Primeiro tentou abraçar e beijar o belo jovem que tinha diante de si; depois, reconheceu a si mesmo e permaneceu horas fixando o espelho da água da fonte como se encantado. O amor lhe era, ao mesmo tempo, concedido e negado; ele se consumia de dor e, ao mesmo tempo, gozava de seu tormento sabendo que, ao menos, não trairia a si próprio, acontecesse o que acontecesse.”
“Se pois, é pela imagem, e não por si mesmo, que o esquecimento se enraíza na memória, foi preciso que se achasse presente para que a memória pudesse captar a imagem. Como pôde o esquecimento, quando estava presente, gravar a sua imagem na memória, se ele, com sua presença apaga tudo que lá encontra? Enfim, seja como for, apesar de ser inexplicável e incompreensível o modo como se enraíza de fato, estou certo de que me lembro do esquecimento, que nos varre da memória tudo aquilo de que nos lembramos.”
“Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.”
“Oferecer o corpo como objeto agradavável, dar gratuitamente prazer: é isso o que os ocidentais não sabem mais fazer. Perderam totalmente o senso da doação. Podem até se esforçar, mas não conseguem mais sentir o sexo como algo natural. Não apenas têm vergonha dos próprios corpos, que não estão à altura dos que vemos nos filmes pornôs, mas também, pelo mesmo motivo, não sentem nenhuma atração pelo corpo do outro. É impossivel fazer amor sem um certo abandono, sem a aceitação ao mesmo tempo temporária de um certo estado de dependência e fraqueza. A exaltação sentimental e a obsessão sexual têm a mesma origem, as duas nascem de um certo esquecimento de si mesmo; neste terreno, a gente não pode se realizar sem se perder. As pessoas se tornam frias, racionais, extremamente conscientes da sua existência individual e dos seus direitos (...) realmente não são as condições ideais para fazer amor".”
“(...) Ah, sim! Todo o sofrimento pertencia ao tempo, da mesma forma que todos os receios e tormentos com que as pessoas se afligiam a si próprias. Todas e quaisquer dificuldades, tudo quanto houvesse de hostil no mundo, sumir-se-ia, cairia derrotado, logo que o homem triunfasse sobre o tempo, logrando arredá-lo pelo pensamento.”
“Serenado um pouco, abriu o livro e retomou a leitura. Esqueceu-se de si próprio por completo e bem podia então dizer que morrera. Sonhava no outro, ou melhor, o outro era um sonho que nele se sonhava, uma criatura da sua infinita solidão. Até que despertou com uma terrível pontada no peito. A personagem do livro acabara de lhe dizer de novo: «Devo repetir ao leitor que comigo morrerá.». E desta vez o efeito foi espantoso. O trágico leitor perdeu o conhecimento naquele seu leito de sofrimento espiritual; deixou de sonhar no outro e deixou de sonhar-se a si mesmo. E quando voltou a si, lançou fora o livro, apagou a luz e procurou adormecer, deixar de sonhar. Impossível! De quando em quando tinha de levantar-se para beber água; ocorreu-lhe que bebia no Sena, no espelho. «Estarei louco? - repetia -. Certamente que não, porque quando uma pessoa se pergunta se está louca é porque não está...». Levantou-se, pegou-lhe o fogo na lareira e queimou o livro, voltando em seguida a deitar-se. E conseguiu finalmente adormecer.”