“Então pensou que, por mais incompreensível que seja a vida, provavelmente nós a cruzamos com o único desejo de retornar ao inferno que nos gerou, e de viver ali, ao lado de quem, uma vez, nos salvou daquele inferno.”
“Como se envelhece rápido, como a sabedoria nada tem a ver com a idade: não nos tornamos mais sábios, apenas conscientes de que os riscos são inerentes a qualquer ação. E então refreamos os desejos, pois tememos que nossos músculos enfraquecidos não mais respondam aos desejos do coração e das memórias. E então preferimos nos calar, calar os desejos, evitar que a vida bruta que nos corria nas veias, naqueles anos, continue a fluir pelos tendões enrijecidos. E então esse medo nos faz precavidos, preferimos aconselhar, nos resguardar da própria vida, como vassouras desgastadas, nos esconder em nossas roupas de lã, mesmo num verão como este. E então tudo o que nos resta é posar de sábios, como se a proximidade da morte nos fizesse melhores conhecedores da vida. Não nos tornamos sábios, apenas velhos, com nossos compromissos, nossos sonhos não cumpridos e, quase sempre, uma vida inútil atrás de nós.”
“E assim prosseguimos com as nossas vidas, cada um para seu lado. Por mais profunda e fatal que seja a perda, por mais importante que seja aquilo que a vida nos roubou – arrebatando-o das nossas mãos -, e ainda que nos tenhamos convertido em pessoas completamente diferentes, conservando apenas a mesma fina camada exterior de pele, apesar de tudo isso continuamos a viver as nossas vidas, assim, em silêncio, estendendo a mão para chegar ao fio dos dias que nos coube em sorte, para logo o deixarmos irremediavelmente para trás. Repetindo, muitas vezes, de forma particularmente hábil, o trabalho de todos os dias, deixando na nossa esteira um sentimento de um incomensurável vazio.”
“O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.”
“E é, em suma, uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, esta de nos aproximarmos das coisas e das pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas o suficiente para verificarmos que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais podemos optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos dá uma certa calma para passarmos a vida, e também para nos resignarmos à morte - pois que permite que não lamentemos nada ao persuadir-nos de que atingimos o melhor, e de que o melhor não era grande coisa.”
“Quanto mais vasto é o tempo que deixámos para trás de nós, mais irresistivel é a voz que nos convida ao regresso.”