“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”
“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”
“O fogo é um preciso aliado do homem mas é perigos para uma criança que não o saiba utilizar. Passa-se o mesmo com certos conhecimentos. À escala da humanidade os homens não são mais do que crianças, olhai o nosso mundo e vede como nos falta educação.”
“Quantos metros precisamos percorrer, quantos dias devemos esperar, em que momento da nossa vida irá se realizar o nosso maior sonho e, uma vez realizado, teremos sensibilidade para identificá-lo? O nosso desejo mais secreto quase sempre é secreto até para nós mesmos.”
“Você, Lord Byron, é inteligente também, mas uma inteligência fina, penetrante, como aço, como uma espada. Ao contrário de mim, você é mais capaz de se fazer amado do que de amar. Sua lógica é irresistível, mas impiedosa, irritante. É desses remédios que matam a doença e o doente. Você tem sentimento poético, e muito — no entanto é incapaz de escrever um verso que preste. Por quê? Sei lá. Há qualquer coisa que te contém, que te segura, como uma mão. Sua compreensão do mundo, da vida e das coisas é surpreendente, seu olho clínico é infalível, mas você é um homem refreado, bem comportado, bem educado, flor do asfalto, lírio de salão, um príncipe, o nosso Príncipe de Gales, como diz o Hugo. Tem uma aura de pureza não conspurcada, mas é ascético demais, aprimorado demais, debilitado por excesso de tratamento. Não se contamina nunca, e isso humilha a todo mundo. É esportivo, é atlético, é saudável, prevenido contra todas as doenças, mas, um dia, não vai resistir a um simples resfriado: há de cair de cama e afinal descobrir que para o vírus da gripe ainda não existe antibiótico. — Opinião de estudante de Medicina — e Eduardo pro- curava ocultar seu ressentimento com um sorriso. — Você, agora.(...)— E você, Eduardo. Você, o puro, o intocado, o que se preserva, como disse Mauro. Seu horror ao compromisso porque você se julga um comprometido, tem uma missão a cumprir, é um escritor. Você e sua simpatia, sua saúde... Bem sucedido em tudo, mas cheio de arestas que ferem sem querer. Seu ar de quem está sempre indo a um lugar que não é aqui, para se encontrar com alguém que não somos nós. Seu desprezo pelos fracos porque se julga forte, sua inteligência incômoda, sua explicação para tudo, seu senso prático — tudo orgulho. O orgulho de ser o primeiro — a vida, para você, é um campeonato de natação. Sua desenvoltura, sua excitação mental, sua fidelidade a um destino certo, tudo isso faz de você presa certa do demônio — mesmo sua vocação para o ascetismo, para a vida áspera, espartana. Você e seus escritores ingleses, você e sua chave que abre todas as portas. Orgulho: você e seu orgulho. De nós três, o de mais sorte, o escolhido, nosso amparo, nossa esperança. E de nós três, talvez, o mais miserável, talvez o mais desgraçado, porque condenado à incapacidade de amar, pelo orgulho, ou à solidão, pela renúncia. Hugo não disse mais nada. E os três, agora, não ousavam levantar a cabeça, para não mostrar que estavam chorando. O garçom veio saber se queriam mais chope, ninguém o atendeu. Alguém soltou uma gargalhada no fundo do bar. Lá fora, na rua, um bonde passou com estrépito.”
“«Andar a pé por uma cidade antiquíssima, como Lisboa, é meio-caminho andado para se sentir uma tristeza profunda pela efemeridade do nosso próprio mundo: onde estão os nossos sítios, os nossos mortos, esses pontos de contacto entre o nosso coração e o território? Como continuar a caminhar, quando grande parte do que amámos já se foi embora? Quem estuda a história não se pode dar ao luxo de ser nostálgico, mas eu não sou historiador, sou escritor e por isso posso ser nostálgico à vontade. E nem toda a tristeza é má. Continuam perto de nós, essas âncoras de osso e pedra, de palavra e memória - camufladas no território, como um vasto sistema nervoso sob os músculos. Continua-se a caminhar, porque o território é tudo o que existe: é tudo o que sempre existiu e continuará a existir; mesmo depois das mortes daqueles de quem gostamos e da ruína dos locais onde vivemos. Somos sílabas e iluminuras num texto redigido pelo tempo sobre a terra que nos viu nascer, como tinta sobre um pedaço de papel. Nós secamos, como a tinta - embaciamos. O território fica - mas nós ficamos nele. Ressequidos. Translúcidos. Como folhas mortas. Não há nada mais para além disso.»”
“Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar. O homem é um bêbedo sempre encostado à parede ou uma criança a fazer tem-tem. Toda a grandeza é um investimento em nós próprios e é por isso que os grandes têm uma grande solidão.”