“Dormiu sem o saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama e que estava deitada de costas do lado esquerdo, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo no outro lado. Pensando em sonhos, pensou que nunca mais poderia dormir assim e, em sonhos, começou a soluçar sem mudar de posição no seu lado, até muito depois de terem acabado de cantar os galos, e acordou-a o sol indesejável da manhã sem ele.”
“Uma noite fiquei a dormir na tua cama, disse. Entendamo-nos, este homem é oleiro, trabalhador manual portanto, sem finezas de formação intelectual e artística tirando as necessárias ao exercício da sua profissão, de uma idade já mais do que madura, criou-se num tempo em que o mais corrente era terem as pessoas de sofrer, cada uma em si mesma e todas em toda a gente, as expressões do sentimento e as ansiedades do corpo, e se é certo que não seriam muitos os que no seu meio social e cultural poderiam pôr-lhe um pé adiante em matéria de sensibilidade e de inteligência, ouvir dizer assim de supetão, da boca de uma mulher com quem nunca jazera em intimidade, que dormiu, ela, na sua cama dele, por muito energicamente que estivesse a andar em direcção à casa onde o equívoco caso se produziu, por força haveria de suspender o passo, olhar com pasmo a ousada criatura, os homens, confessemo-lo de uma vez, nunca acabarão de entender as mulheres, felizmente que este conseguiu, sem saber bem como, descobrir no meio da sua confusão as palavras exactas que a ocasião pedia, Nunca mais dormirás noutra.”
“O comandante olhou Fermina Darza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”
“Às vezes lhe doía ter deixado com a sua passagem aquele riacho de miséria e às vezes sentia tanta raiva que espetava os dedos nas agulhas,porém mais lhe doía e com mais raiva ficava e mais lhe amargava o fragrante e bichado goiabal de amor que ia arrastando até a morte.”
“Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações. E perguntando e perguntando ia atiçando sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo.– Porra! – gritou.Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.– Onde está? – perguntou alarmada.– O quê?– O animal! – esclareceu Amaranta.Úrsula pôs o dedo no coração.– Aqui – disse”
“Ele só teve um momento de frieza, com o Dr. Cottard: vendo-o piscar o olho e sorrir-lhe com um ar ambíguo antes que se tivessem falado (mímica que Cottard chamava de "deixar fluir"), Swann acreditou que o médico o conheci sem dúvida por ter estado com ele em algum lugar de prazer, embora ele mesmo os frequentasse muito pouco, nunca tendo vivido no mundo da farra. Considerando a alusão de mau gosto, sobretudo na presença de Odette, que poderia fazer dele uma ideia falsa, simulou um ar glacial. Mas quando soube que a dama que se encontrava a seu lado era a sra. Cottard, pensou que um marido tão jovem não teria pensado em fazer alusão, diante de sua mulher, a divertimento desse tipo, e deixou de atribuir ao ar cúmplice do médico o significado que temia.”
“ (…) Senti saudades, não do passado, mas dum futuro qualquer, tão longe, tão lá no fundo, tão sonho, tecido apenas de pequenas coisas doces, num mundo menos pesado de cadáveres, sem outro heroísmo que não fosse o de vivermos teimosamente todos os dias e, sobretudo, sem a horrível morte colectiva a substituir a boa, a individual, a sagrada morte de cada um. (…)Assim cogitei toda a tarde, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data em que findou a segunda guerra mundial, no meio de vivas e de bandeiras de triunfo, e em que tentei, em vão, resignar-me ao mundo dos outros e às montras de enchidos de porco, - sem estrelas reflectidas nos vidros.”