“Em suma, é preciso confessar que existem dois tipos de leitura: a leitura em animus e a leitura em anima. Não sou o mesmo homem quando leio um livro de idéias, em que o animus deve ficar vigilante, pronto para a crítica, pronto para a réplica, ou um livro de poeta, em que as imagens devem ser recebidas numa espécie de acolhimento transcendental dos dons. Ah, para fazer eco a esse dom absoluto que é uma imagem de poeta seria necessário que nossa anima pudesse escrever um hino de agradecimento! O animus lê pouco; a anima, muito.Não é raro o meu animus repreender-me por ler demais.Ler, ler sempre, melíflua paixão da anima. Mas quando, depois de haver lido tudo, entregamo-nos à tarefa, com devaneios, de fazer um livro, o esforço cabe ao animus. E sempre um duro mister, esse de escrever um livro. Somos sempre tentados a limitar-nos a sonhar.”
“É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós”
“Ao contemplar uma pintura de grandes proporções, sentimo-nos empolgados por estar na presença de tudo ao mesmo tempo e queremos entrar no quadro. Quando estamos no meio de um volumoso romance, sentimos o estonteante prazer de estar num mundo que não conseguimos ver em sua inteireza. Para ver tudo temos de constantemente transformar os momentos separados em quadros mentais. É esse processo de transformação que torna a leitura de um romance uma tarefa mais pessoal, mais colaborativa que a contemplação de um quadro.”
“Esse é um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que tenho escrito, foi escrito para alguém que não me pode ler, e mesmo este livro não passa de uma carta para uma sombra [22].”
“Ler é um acto de amor. Se o leitor não for um amante, se o escritor for um proxeneta, os livros entregar-se-ão sem paixão e sem ternura, cobrarão o seu preço (e que terríveis e fastidiosos preços os livros podem cobrar!) e esquecerão um e outro. Um dos piores crimes praticados contras os livros é obrigarmo-nos a lê-los.”
“Serenado um pouco, abriu o livro e retomou a leitura. Esqueceu-se de si próprio por completo e bem podia então dizer que morrera. Sonhava no outro, ou melhor, o outro era um sonho que nele se sonhava, uma criatura da sua infinita solidão. Até que despertou com uma terrível pontada no peito. A personagem do livro acabara de lhe dizer de novo: «Devo repetir ao leitor que comigo morrerá.». E desta vez o efeito foi espantoso. O trágico leitor perdeu o conhecimento naquele seu leito de sofrimento espiritual; deixou de sonhar no outro e deixou de sonhar-se a si mesmo. E quando voltou a si, lançou fora o livro, apagou a luz e procurou adormecer, deixar de sonhar. Impossível! De quando em quando tinha de levantar-se para beber água; ocorreu-lhe que bebia no Sena, no espelho. «Estarei louco? - repetia -. Certamente que não, porque quando uma pessoa se pergunta se está louca é porque não está...». Levantou-se, pegou-lhe o fogo na lareira e queimou o livro, voltando em seguida a deitar-se. E conseguiu finalmente adormecer.”