“Chovia bastante naquela manhã. A luz tinha um tom acinzentado e musguento devido às nuvens baixas. Teve de admitir que a menina não era um cadáver. Estava viva. Talvez tivesse nascido gelada, mas agora estava viva. Ainda suja com o sangue do nascimento e o início aguado das suas fezes, Liir levou-a até à porta e ergue-a para a chuva. Lavada, revelou-se verde.”

Gregory Maguire

Gregory Maguire - “Chovia bastante naquela manhã. A luz...” 1

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“Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto no céu, e alegrar quem o observasse.Um dia, uma mulher viu o pássaro e apaixonou-se por ele. Ficou a olhar o seu voo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rapidamente, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia. Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro.Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capacidade de voar do pássaro.E sentiu-se sozinha.E pensou: “vou montar uma armadilha. Da próxima vez que o pássaro surgir, ele não partirá mais.”O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola.Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objecto da sua paixão, e ela mostrava-o ás suas amigas, que comentavam: “Mas tu és uma pessoa que tem tudo.” Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava de o conquistar, foi perdendo o interesse. O pássaro sem puder voar e exprimir o sentido da sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio – e a mulher já não lhe prestava atenção, apenas prestava atenção á maneira como o alimentava e como cuidava da sua gaiola.Um belo dia o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e passava a vida a pensar nele. Mas não se lembrava da gaiola, recordava apenas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens.Se ela se observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico.Sem o pássaro a sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater á sua porta. “Por que vieste?” perguntou á morte. “Para que possas voar de novo com ele nos céus”, respondeu a morte. “Se o tivesses deixado partir e voltar sempre, amá-lo-ias e admirá-lo-ias ainda mais; porém, agora precisas de mim para puderes encontrá-lo de novo.”

Paulo Coelho
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“(...)sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações. faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.”

Clarice Lispector
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“Para uma irlandesa, os Kreder eram um casal avarento e porco. Não tinha a imundície franca, instintiva, combativa, enlameada e maltrapilha que Mary conhecia e podia perdoar e amar. A deles era a imundície alemã da economia, de ser desleixado com o que vestia para poupar as roupas, de economizar nos banhos, de deixar o cabelo oleoso para poupar sabonete e toalhas, de ter as roupas sujas não por opção, as porque era mais barato, de manter a casa fechada e abafada para não gastar com aquecimento, de viver miseravelmente não apenas para economizar dinheiro, mas até para esquecer que o possuíam, trabalhando sem parar não só porque era de sua natureza ou porque precisavam disso, mas porque lhes trazia dinheiro e porque assim evitavam as situações em que podiam gastá-lo.”

Gertrude Stein
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“Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E, abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. À luz da lua, espreitei para a casota, chamei o cão. Mondego não respondeu. Meti a mão dentro - o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um lado e outro no escuro, chamei: Mondego!Nada. Mas eis que, ao voltar-me para sair, eu vi o cão, enfim: suspenso de uma trave enforcado no arame, Mondego recortava-se contra o céu, iluminado de lua e de estrelas. Dominei-me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me. Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente: quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave o seu corpo leproso, banhado de luar...No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe fosse uma voz de aliança.”

Vergílio Ferreira
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“As minhas primeiras emoções tinham sido a melancolia mais pura e a compaixão mais sincera, mas na mesma proporção em que o desamparo de Bartleby crescia na minha fantasia, aquela melancolia se transformava em medo, e a compaixão, em repulsa. É tão verdadeiro e ao mesmo tempo tão terrivel o fato de que, ao vermos ou presenciarmos a miséria, os nossos melhores sentimentos são despertados até um certo ponto; mas, em certos casos especiais, não passam disso. Erram os que afirmam que é devido apenas ao egoísmo inerente ao coração humano. Na verdade, provém de uma certa impotência em remediar um mal excessivo e orgânico. Para uma pessoa sensivel, a piedade é quase sempre uma dor. Quando afinal percebe que tal piedade não significa um socorro eficaz, o bom senso compele a alma a desvencilhar-se dela. O que vi naquela manhã convenceu-me de que o escrivão era vítima de um mal inato e incurável. Eu podia dar esmolas ao seu corpo, mas o seu corpo não lhe doía; era a sua alma que sofria, e ela estava fora do meu alcance.”

Herman Melville
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