“(...) o parvalhão reparou nela e aproximou-se para a cumprimentar. Haviam de ouvir a maneira como se cumprimentaram. Haviam de pensar que não se viam há vinte anos. Haviam de pensar que tomavam banho na mesma banheira ou coisa assim quando eram pequenos. Amigos do coração. Era de vómitos. O mais engraçado era que provavelmente se tinham encontrado uma única vez, numa festa pirosa qualquer. Finalmente, quando deram por terminadas as lambuzadelas, a amiga Sally apresentou-nos. Chamava-se George qualquer coisa - já nem sequer me lembro - e andava em Andover. Só mesmo visto. Haviam de o ver quando a amiga Sally lhe perguntou o que achava da peça. Era o tipo de armante que tem de se dar espaço para responder a qualquer pergunta que lhe façam.”
“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”
“Serenado um pouco, abriu o livro e retomou a leitura. Esqueceu-se de si próprio por completo e bem podia então dizer que morrera. Sonhava no outro, ou melhor, o outro era um sonho que nele se sonhava, uma criatura da sua infinita solidão. Até que despertou com uma terrível pontada no peito. A personagem do livro acabara de lhe dizer de novo: «Devo repetir ao leitor que comigo morrerá.». E desta vez o efeito foi espantoso. O trágico leitor perdeu o conhecimento naquele seu leito de sofrimento espiritual; deixou de sonhar no outro e deixou de sonhar-se a si mesmo. E quando voltou a si, lançou fora o livro, apagou a luz e procurou adormecer, deixar de sonhar. Impossível! De quando em quando tinha de levantar-se para beber água; ocorreu-lhe que bebia no Sena, no espelho. «Estarei louco? - repetia -. Certamente que não, porque quando uma pessoa se pergunta se está louca é porque não está...». Levantou-se, pegou-lhe o fogo na lareira e queimou o livro, voltando em seguida a deitar-se. E conseguiu finalmente adormecer.”
“Era a primeira vez que Sam via uma passagem de um combate de Homens contra Homens, e não lhe tinha agradado muito. Sentiu-se grato por não poder ver o rosto do morto. Perguntou a si mesmo como se chamaria o homem e donde teria vindo, se era realmente mau por natureza ou que mentiras e ameaças o tinham levado a percorrer o longo caminho da sua casa até ali, e se não teria, na realidade, preferido continuar lá em paz.”
“Naquele tempo imaginávamo-nos fechados numa espécie de redil, à espera que nos soltassem para a vida. E, quando o momento chegasse, as nossas vidas - e o próprio tempo - acelarariam. Como podíamos saber que, de qualquer modo, as nossas vidas já haviam começado, que já levávamos vantagem, que algum dano já fora inflingido?”
“Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar, percebe-se o desconforto da ausência porque o quadro mais à esquerda e o aparador mais longe, sobretudo o quadro mais à esquerda e o buraco do primeiro prego, em que a moldura não se fixou, à vista, fala-se de maneira diferente esperando uma voz que não chega, come-se de maneira diferente, deixando uma porção na travessa de que ninguém se serve, os cotovelos vizinhos deixam de impedir os nossos e faz-nos falta que impeçam os nossos”