“As coisasA bengala, as modeas, o chaveiro, A dócil fechadura, as tardiasNotas que não lerão os poucos diasQue me restam, os naipes e o tabuleiro,Um livro e em suas páginas a desvanecidaVioleta, monumento de uma tardeSem dúvida inesquecível e já esquecida,O rubo espelho ocidental em que ardeUma ilusória aurora. Quantas coisas,Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,Servem-nos, como tácitos escravos, cegas e estranhamente sigilosas!Durarão para além de nosso esquecimentoNunca saberão que partimos em um momento.”
“Desvario laborioso e empobrecedor é o de compor vastos livros; o de espraiar por quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos.”
“Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acretitava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.”
“Quando um indivíduo cria algo, digamos, uma composição musical, um romance, uma pintura, um filme, um vídeo, esse indivíduo se torna um autor, quer dizer, alguém que é capaz de deixar marcas, traços de seu modo próprio de criar mensagens em um processo de signos com o qual lida. O autor é aquele que interfere de modo particular e pessoal em um processo de signos.”
“Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede, sucede a mim...”
“Gosto das pessoas que tiram e coleccionam fotografias. Das pessoas que guardam em gavetas especiais os álbuns com as memórias de uma vida. Eu não gosto de fotografias ou por outra não tenho álbuns. Nem álbum sequer. Tive um há vários anos ao qual sucedeu o mesmo que a minha única tentativa de diário. Ficou pelo caminho. Acabei por oferecer a maioria das fotografias nem sei bem onde ficou esse álbum esventrado destituído de sentido que perdeu a dignidade. Desde muito novo que decidi assim. Sinto-me inevitavelmente estranho quando um clique se prepara. Talvez como os índios que acreditavam que as máquinas fotográficas aprisionavam as almas e por isso as temiam. Resisto a que me tirem o boneco. Penso sempre que ao contrário do sorriso aberto e alegre dos outros aquele é um momento para a minha tristeza acordar. Uma fotografia é invariavelmente o fantasma fugaz de um momento que desaparece. Um atestado de velhice. Uma prova de que somos mortais e nada mesmo nada se repetirá. Não quero por isso que me peçam sorrisos rasgados imaginar passarinhos dizer «queijo» em línguas estranhas. Mas acedo a aparecer nas fotografias - porque sei que elas estão destinadas aos álbuns nas gavetas especiais das pessoas que adoram tirá-las e coleccioná-las. Conforto-me na altura do clique com a terna certeza de que se porventura quiser rever aquele passado revisitar o fantasma feliz poderei sempre caminhar entre casas estacionar a várias portas e subir à casa de amigos para me encontrar. Gosto das pessoas que tiram e coleccionam fotografias porque elas levam-me consigo para um lugar melhor: o esconderijo das suas próprias alegrias. As gavetas que nunca abrirei.”
“A única coisa de que dispomos, para acreditar, são os nossos sentidos, as ferramentas que utilizamos para apreender o mundo: a nossa vista, o nosso tacto, a nossa memória. Se os nossos sentidos nos mentirem, então não podemos confiar em nada. E mesmo que não acreditemos, ainda assim não podemos seguir por nenhum outro caminho além daquele que os nossos sentidos nos mostram; e esse caminho, temos de o percorrer até o fim.”