“Quando Odette deixasse de ser para ele uma criatura sempre ausente, cobiçada, imaginária, quando o sentimento que ele tinha por ela não fosse mais aquela mesma perturbação misteriosa que lhe causava a frase da sonata e sim afeto, reconhecimento, quando se estabelecessem entre ambos relações normais que poriam fim à loucura e à tristeza dele, então sem dúvida os atos da vida de Odette lhe pareceriam si mesmos pouco interessantes.”
“Ele só teve um momento de frieza, com o Dr. Cottard: vendo-o piscar o olho e sorrir-lhe com um ar ambíguo antes que se tivessem falado (mímica que Cottard chamava de "deixar fluir"), Swann acreditou que o médico o conheci sem dúvida por ter estado com ele em algum lugar de prazer, embora ele mesmo os frequentasse muito pouco, nunca tendo vivido no mundo da farra. Considerando a alusão de mau gosto, sobretudo na presença de Odette, que poderia fazer dele uma ideia falsa, simulou um ar glacial. Mas quando soube que a dama que se encontrava a seu lado era a sra. Cottard, pensou que um marido tão jovem não teria pensado em fazer alusão, diante de sua mulher, a divertimento desse tipo, e deixou de atribuir ao ar cúmplice do médico o significado que temia.”
“E é, em suma, uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, esta de nos aproximarmos das coisas e das pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas o suficiente para verificarmos que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais podemos optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos dá uma certa calma para passarmos a vida, e também para nos resignarmos à morte - pois que permite que não lamentemos nada ao persuadir-nos de que atingimos o melhor, e de que o melhor não era grande coisa.”
“Embora Swann nunca se tivesse considerado seriamente ameaçado pela amizade de Odette por esse ou aquele fiel, sentira uma profunda doçura ao ouvi-la admitir assim diante de todos, com aquele tranquilo despudor, seus encontros cotidianos de cada noite, a situação privilegiada que ele ocupava em sua casa e a preferência por ele que ali estava implícita.”
“Só se um ser humano a amasse tanto que você importasse mais para ele que pai e mãe. Se ele a amasse de todo o coração e deixasse o padre pôr a mão direita sobre a sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidade. Nesse caso, a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e você, também, obteria uma parcela da felicidade humana. Ele lhe daria uma alma e, no entanto, conservaria a dele próprio.”
“Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava de, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente - tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre.”
“mesmos o que nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe nos fazer chorar ainda. Fora de nós? Erre para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. É somente graças a tal esquecimento que pode de vez em quando, reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face àquela como o era essa criatura, sofrer de novo, porque não somos mais nós mas ele, e é quem amava a pessoa que agora nos é indiferente.”