“As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nossos parlamentos.As casas de banho daquele velho prédio de um bairro operário dos subúrbios de Praga eram menos hipócritas; do chão de ladrilho cinzentos, erguia-se, órfã e miserável, a retrete. não fazia lembrar uma flor de nenúfar, mas, pelo contrário, evocava o que, na realidade, era: o sítio onde o cano terminava e o seu diâmetro se alargava. Nem sequer tinha tampo de madeira e Tereza teve de sentar-se directamente na lioça esmaltada, sentiu um arrepio de frio.(…)”
“Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar, percebe-se o desconforto da ausência porque o quadro mais à esquerda e o aparador mais longe, sobretudo o quadro mais à esquerda e o buraco do primeiro prego, em que a moldura não se fixou, à vista, fala-se de maneira diferente esperando uma voz que não chega, come-se de maneira diferente, deixando uma porção na travessa de que ninguém se serve, os cotovelos vizinhos deixam de impedir os nossos e faz-nos falta que impeçam os nossos”
“Quando se segue um caminho, rumo a uma mudança na nossa vida, não vale a pena parar para cheirar as rosas, digam os famosos livros de auto-ajuda o que disserem. As rosas têm espinhos, e cheirá-las pode ter muito maus resultados. Uma pessoa pode auto-mutilar-se ao fim de anos sem o fazer e acabar por passar a noite no chão da casa de banho, demasiado fraca para se mexer. Parar para cheirar as rosas pode enterrar essa pessoa debaixo de toneladas de memórias de tempos e de coisas que fez que preferia esquecer. Pode acabar por se lembrar que tem um propósito na vida e obrigar-se a voltar ao plano inicial, sabendo, no entanto, que, se não se tivesse distraído com as rosas, já poderia ter alcançado os seus objectivos.”
“A única coisa de que dispomos, para acreditar, são os nossos sentidos, as ferramentas que utilizamos para apreender o mundo: a nossa vista, o nosso tacto, a nossa memória. Se os nossos sentidos nos mentirem, então não podemos confiar em nada. E mesmo que não acreditemos, ainda assim não podemos seguir por nenhum outro caminho além daquele que os nossos sentidos nos mostram; e esse caminho, temos de o percorrer até o fim.”
“Todos nós temos necessidade de ser olhados. Podemos ser classificados em quatro categorias, segundo o tipo de olhar sob o qual queremos viver.A primeira procura um olhar de um número infinito de olhos anônimos, em outras palavras, o olhar do público.(...)Na segunda categoria, estão aqueles que não podem viver sem o olhar de numerosos olhos famliares. São os organizadores incansáveis de coquetéis e jantares. São mais felizes que os da primeira categoria, que, quando perdem o seu público, imaginam que a luz se apagou na sala de suas vidas. É o que acontece a todos, mais dia, menos dia. As pessoas da segunda categoria, pelo contrário, sempre conseguem arrumar quem as olhe. (...)Em seguida, vem a terceira categoria, as dos que têm necessidade de viver sob o olhar do ser amado. A situação deles é tão perigosa quanto a daqueles do primeiro grupo. Basta que os olhos do ser amado se fechem para que a sala fique mergulhada na escuridão.(...)Por fim, existe a quarta categoria, a mais rara, a dos que vivem sob os olhares imaginários dos ausentes. São os sonhadores. Por exemplo, Franz. Se ele chegou até a fronteira do Camboja, foi unicamente por causa de Sabina. O ônibus chacoalha na estrada da Tailândia e ele sente que os olhos de Sabina estão pousados sob ele.”
“Universo interior!Eram grandes palavras, essas, e Jaromil ouviu-as com uma extrema satisfação. Nunca se esquecia de que coma idade de cinco anos era já considerado como uma criança excepcional, diferente das outras; o comportamento dos seus colegas de turma, que troçavam da pasta ou da camisa dele, confirmara-o, do mesmo modo (por vezes, duramente), na sua singularidade. Mas, até aqui, essa singularidade não fora para ele mais do que uma noção vazia e incerta; era uma esperança incompreensível ou uma incompreensível rejeição; mas agora, acabava de receber um nome: era um universo interior original; (...)o que lhe sugeria a ideia confusa de que a originalidade do seu universo interior não era o resultado de um esforço laborioso mas se exprimia por meio de tudo o que passava fortuitamente e maquinalmente pela sua cabeça; que lhe era dada, como um dom.”
“Ignorarei para todo o sempre de que modo ela passava os dias, onde se escondia, qual era a sua companhia durante os meses de Inverno aquando da sua primeira fuga e no decurso das pouca semana de primavera em que escapulira de novo. Eis o seu segredo. Um pobre e precioso segredo que os carrascos, os decretos, as autoridades ditas de Ocupação, o depósito de presos, as casernas, os campos, a história, o tempo –tudo o que nos macula e destrói – não puderam roubar-lhe.”