“Universo interior!Eram grandes palavras, essas, e Jaromil ouviu-as com uma extrema satisfação. Nunca se esquecia de que coma idade de cinco anos era já considerado como uma criança excepcional, diferente das outras; o comportamento dos seus colegas de turma, que troçavam da pasta ou da camisa dele, confirmara-o, do mesmo modo (por vezes, duramente), na sua singularidade. Mas, até aqui, essa singularidade não fora para ele mais do que uma noção vazia e incerta; era uma esperança incompreensível ou uma incompreensível rejeição; mas agora, acabava de receber um nome: era um universo interior original; (...)o que lhe sugeria a ideia confusa de que a originalidade do seu universo interior não era o resultado de um esforço laborioso mas se exprimia por meio de tudo o que passava fortuitamente e maquinalmente pela sua cabeça; que lhe era dada, como um dom.”
“Jean-Marc ergueu-se para ir buscar a garrafa de conhaque e dois copos. E, depois, de uma golada: - No fim da minha visita ao hospital, ele começou a contar recordações. Recordou-me aquilo que eu teria dito quando tinha dezasseis anos. Nesse momento compreendi o único sentido da amizade tal como hoje é praticada. A amizade é indispensável ao homem para o bom funcionamento da sua memória. Lembrar-se do passado, trazê-lo sempre consigo, é talvez a condição necessária para conservar, como se costuma dizer, a integridade do eu. Pare o eu não encolha, para que mantenha o seu volume, é preciso regar as recordações como as flores de uma vaso, e essa rega exige um contacto regular com testemunhas do passado, isto é, com amigos. Eles são o nosso espelho, a nossa memória; não se exige anda deles, apenas que de vez em quando puxem o lustro a esse espelho para que nos possamos mirar nele. Mas estou –me nas tintas para o que fazia no liceu! O que sempre desejei desde a primeira juventude, talvez desde a infância, foi algo completamente diferente: a amizade como um valor acima de todos os outros. Gostava de dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia-o por provocação, mas pensava-o a sério. Hoje sei que essa máxima era arcaica. Podia ser válida para Aquiles, o amigo de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até ao Sancho, que apesar dos desacordos era um verdadeiro amigo do seu amo. Mas já não o é para nós. Vou tão no meu pessimismo que hoje posso preferir a verdade à amizade.”
“As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nossos parlamentos.As casas de banho daquele velho prédio de um bairro operário dos subúrbios de Praga eram menos hipócritas; do chão de ladrilho cinzentos, erguia-se, órfã e miserável, a retrete. não fazia lembrar uma flor de nenúfar, mas, pelo contrário, evocava o que, na realidade, era: o sítio onde o cano terminava e o seu diâmetro se alargava. Nem sequer tinha tampo de madeira e Tereza teve de sentar-se directamente na lioça esmaltada, sentiu um arrepio de frio.(…)”
“Quer dizer, era de esperar que o senhor dos titãs tivesse aprendido suas lições eras atrás, quando foi derrubado pelos deuses. Era de se esperar que ser picado em um milhão de pedacinhos e jogado na parte mais escura do Mundo Inferior lhe desse uma dica sutil de que ninguém o queria por perto. Mas não.”
“Agora, o pintor dissertava longamente acerca da composição: o que há de mais bonito nos sonhos, dizia, é o encontro improvável de seres e de coisas que não poderiam encontrar-se na vida corrente; num sonhos, um barco pode entrar por uma janela num quarto de dormir, uma mulher que já não está viva há vinte anos pode aparecer deitada numa cama e, contudo, ei-la a subir para o barco que se transforma acto contínuo em caixão e o caixão põe-se a flutuar por entre as margens floridas de um rio.”
“Mas talvez naquele momento ele não tenha sido capaz de nenhum cálculo,o grito que lhe saiu da boca era o grito de sua alma e nele e com ele descarregava anos de longos e secretos remorsos.Ou seja,após uma vida de incertezas,entusiasmos e desilusões,vilezas e traições,posto diante da inelutabilidade de sua ruína,ele decidia professar a fé de sua juventude,sem mais perguntar se era justa ou errada,mas para mostrar a si mesmo que era capaz de alguma fé.”
“Mas ela sabia, lá no fundo ela sabia. Ela tinha sido um recipiente onde o rei tinha despejado a sua angústia e o seu desespero. Estando tão vazia, ela deixara-se encher pelo negrume dele. Para ele, a criança que dava pontapés e que sonhava dentro dela não era mais do que uma semente que ele tinha plantado por engano, uma erva daninha que tinha de ser arrancada”