“via nas lágrimas tentáculos que queriam apanhá-lo para o arrancarem ao idílio do seu não-destino: as lágrimas repugnavam-lhe.”
“Xavier disse-lhe para onde iam. Ela respondeu que naquele quarto estava sua casa, enquanto lá onde Xavier queria levá-la não teria nem seu armário de roupas nem seu pássaro na gaiola. Xavier respondeu que um lar não é um armário de roupas nem um pássaro na gaiola, mas a presença de alguém a quem se ama. Disse-lhe depois que ele mesmo não tinha um lar, ou melhor, para exprimir-se de outra maneira, que seu lar estava nos seus passos, na sua caminhada, nas suas viagens. Que seu lar estava onde se abrissem horizontes desconhecidos.”
“O mesmo cineasta do subconsciente que de dia lhe enviava pedaços da paisagem natal como imagens de felicidade, organizava-lhe de noite, regressos aterradores ao seu país. O dia era iluminado pela beleza do país abandonado, a noite pelo terror de lá voltar. O fia mostrava-lhe o paraíso que perdera, a noite o inferno de onde fugira.”
“Jean-Marc ergueu-se para ir buscar a garrafa de conhaque e dois copos. E, depois, de uma golada: - No fim da minha visita ao hospital, ele começou a contar recordações. Recordou-me aquilo que eu teria dito quando tinha dezasseis anos. Nesse momento compreendi o único sentido da amizade tal como hoje é praticada. A amizade é indispensável ao homem para o bom funcionamento da sua memória. Lembrar-se do passado, trazê-lo sempre consigo, é talvez a condição necessária para conservar, como se costuma dizer, a integridade do eu. Pare o eu não encolha, para que mantenha o seu volume, é preciso regar as recordações como as flores de uma vaso, e essa rega exige um contacto regular com testemunhas do passado, isto é, com amigos. Eles são o nosso espelho, a nossa memória; não se exige anda deles, apenas que de vez em quando puxem o lustro a esse espelho para que nos possamos mirar nele. Mas estou –me nas tintas para o que fazia no liceu! O que sempre desejei desde a primeira juventude, talvez desde a infância, foi algo completamente diferente: a amizade como um valor acima de todos os outros. Gostava de dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia-o por provocação, mas pensava-o a sério. Hoje sei que essa máxima era arcaica. Podia ser válida para Aquiles, o amigo de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até ao Sancho, que apesar dos desacordos era um verdadeiro amigo do seu amo. Mas já não o é para nós. Vou tão no meu pessimismo que hoje posso preferir a verdade à amizade.”
“O bom Deus foi injusto ao dar um rosto tão belo àquele imbecil e pernas curtas a Lermontov. Mas se o poeta não ter pernas compridas, possui um espírito sarcástico que o puxa para as alturas.”
“Universo interior!Eram grandes palavras, essas, e Jaromil ouviu-as com uma extrema satisfação. Nunca se esquecia de que coma idade de cinco anos era já considerado como uma criança excepcional, diferente das outras; o comportamento dos seus colegas de turma, que troçavam da pasta ou da camisa dele, confirmara-o, do mesmo modo (por vezes, duramente), na sua singularidade. Mas, até aqui, essa singularidade não fora para ele mais do que uma noção vazia e incerta; era uma esperança incompreensível ou uma incompreensível rejeição; mas agora, acabava de receber um nome: era um universo interior original; (...)o que lhe sugeria a ideia confusa de que a originalidade do seu universo interior não era o resultado de um esforço laborioso mas se exprimia por meio de tudo o que passava fortuitamente e maquinalmente pela sua cabeça; que lhe era dada, como um dom.”
“As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nossos parlamentos.As casas de banho daquele velho prédio de um bairro operário dos subúrbios de Praga eram menos hipócritas; do chão de ladrilho cinzentos, erguia-se, órfã e miserável, a retrete. não fazia lembrar uma flor de nenúfar, mas, pelo contrário, evocava o que, na realidade, era: o sítio onde o cano terminava e o seu diâmetro se alargava. Nem sequer tinha tampo de madeira e Tereza teve de sentar-se directamente na lioça esmaltada, sentiu um arrepio de frio.(…)”