“Alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso (...) era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino (...) ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas da solidão, muitas deles abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união.”

Raduan Nassar

Raduan Nassar - “Alguma vez te passou pela cabeça, um...” 1

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“E pergunto-me a mim mesma se a eternidade será isto, recordar uma e outra vez, um vestido, um beijo, um dia de Outono, a primeira neve, os meus cães. As coisas essenciais. O nome das rosas e as frases dos livros, o tempo em que alguém nos amou, o jardim que fizemos com as nossas mãos”

Ana Teresa Pereira
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“Os romances nunca serão totalmente imaginários nem totalmente reais. Ler um romance é confrontar-se tanto com a imaginação do autor quanto com o mundo real cuja superfície arranhamos com uma curiosidade tão inquieta. Quando nos refugiamos num canto, nos deitamos numa cama, nos estendemos num divã com um romance nas mãos, nossa imaginação passa a trafegar o tempo entre o mundo daquele romance e o mundo no qual ainda vivemos. O romance em nossas mãos pode nos levar a um outro mundo onde nunca estivemos, que nunca vimos ou de que nunca tivemos notícia. Ou pode nos levar até as profundezas ocultas de um personagem que, na superfície, parece semelhante às pessoas que conhecemos melhor. Estou chamando atenção para cada uma dessas possibilidades isoladas porque há uma visão que acalento de tempos em tempos que abarca os dois extremos. Às vezes tento conjurar, um a um, uma multidão de leitores recolhidos num canto e aninhados em suas poltronas com um romance nas mãos; e também tento imaginar a geografia de sua vida cotidiana. E então, diante dos meus olhos, milhares, dezenas de milhares de leitores vão tomando forma, distribuídos por todas as ruas da cidade, enquanto eles lêem, sonham os sonhos do autor, imaginam a existência dos seus heróis e vêem o seu mundo. E então, agora, esses leitores, como o próprio autor, acabam tentando imaginar o outro; eles também se põem no lugar de outra pessoa. E são esses os momentos em que sentimos a presença da humanidade, da compaixão, da tolerância, da piedade e do amor no nosso coração: porque a grande literatura não se dirige à nossa capacidade de julgamento, e sim à nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.”

Orhan Pamuk
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“Tudo parecia organizado da melhor forma possível, como se de fato o mundo constasse somente de palavras, como se assim o próprio horror fosse trazido para dimensões seguras, como se para cada aspecto de uma coisa houvesse um reverso, para cada mal um bem, para cada dissabor um prazer, para cada infelicidade uma felicidade e para cada mentira um quinhão de verdade.”

W.G. Sebald
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“Quer dizer, era de esperar que o senhor dos titãs tivesse aprendido suas lições eras atrás, quando foi derrubado pelos deuses. Era de se esperar que ser picado em um milhão de pedacinhos e jogado na parte mais escura do Mundo Inferior lhe desse uma dica sutil de que ninguém o queria por perto. Mas não.”

Rick Riordan
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“Posso acreditar em coisas que são verdade e posso acreditar em coisas que não são verdade. E posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Posso acreditar no Papai Noel, no coelhinho da Páscoa, na Marilyn Monroe, nos Beatles, no Elvis e no Mister Ed. Ouça bem... Eu acredito que as pessoas evoluem, que o saber é infinito, que o mundo é comandado por cartéis secretos de banqueiros e que é visitado por alienígenas regularmente -uns legais, que se parecem com lêmures enrugados, e uns maldosos, que mutilam gado e querem nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro é um saco e que é demais, e acredito que um dia a Mulher Búfalo Branco vai ficar preta e chutar o traseiro de todo mundo. Também acho que todos homens não passam de meninos crescidos com profundos problemas de comunicação e que o declínio da qualidade do sexo nos Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in de um Estado ao outro. Acredito que todos os políticos são canalhas sem princípios, mas ainda assim melhores do que as outras alternativas. Acho que a Califórnia vai afundar no mar quando o grande terremoto vier, ao mesmo tempo em que a Flórida vai se dissolver em loucura, em jacarés, em lixo tóxico. Acredito que sabonetes antibactericidas estão destruindo nossa resistência à sujeira e às doenças, de modo que algum dia todos seremos dizimados por uma gripe comum, como aconteceu com os marcianos em Guerra dos Mundos. Acredito que os melhores poetas do século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que o jade é esperma de dragão seco, e que há milhares de anos em uma vida passada eu era uma xamã siberiana de um braço só. Acho que o destino da humanidade está escrito nas estrelas, que o gosto dos doces era mesmo melhor quando eu era criança, que aerodinamicamente é impossível pra uma abelha grande voar, que a luz é uma onda e uma partícula, que tem um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e que está morto ao mesmo tempo (apesar de que, se não abrirem a caixa algum dia e alimentarem o bicho, ele no fim vai ficar só morto de dois jeitos), e que existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio universo. Acredito em um deus pessoal que cuida de mim e se preocupa comigo e que supervisiona tudo que eu faço, em uma deusa impessoal que botou o universo em movimento e saiu fora pra ficar com as amigas dela e nem sabe que estou viva. Eu acredito em um universo vazio e sem deus, um universo com caos causal, um passado tumultuado e pura sorte cega. Acredito que qualquer pessoa que diz que o sexo é supervalorizado nunca fez direito, que qualquer um que diz saber o que está acontecendo pode mentir a respeito de coisas pequenas. Acredito na honestidade absoluta e em mentiras sociais sensatas. Acredito no direito das mulheres à escolha, no direito dos bebês de viver, que, ao mesmo tempo em que toda vida humana é sagrada, não tem nada de errado com a pena de morte se for possível confiar no sistema legal sem restrições, e que ninguém, a não ser um imbecil, confiaria no sistema legal. Acredito que a vida é um jogo, uma piada cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e aproveitar.”

Neil Gaiman
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