“Pedro, Pedro, é do teu silêncio que eu preciso agora, levante as viseiras, passeie os olhos, solte-lhes as rédeas, mas contenha a força e o recato da família, e o ímpeto áspero da tua língua, pois só no teu silêncio úmido, só nesse concerto esquivo é que reconstituo, por isso molhe os lábios, molhe a boca, molhe os teus dentes cariados, e a sonda que desce para o estômago, encha essa bolsa de couro apertada pelo teu cinto, deixe que o vinho vaze pelos teus poros, só assim é que se cultua o obsceno”
“Alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso (...) era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino (...) ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas da solidão, muitas deles abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união.”
“O amor é isso mesmo meu caro Kafka. Tu é que andas sempre nas nuvens e experimentas todos esses sentimentos maravilhosos, do mesmo modo que só tu é que desces ao abismo mais profundo da angústia. E o teu corpo e a tua alma têm de suportar. Estás entregue a ti próprio.”
“Os homens irão deixar-te, a tua beleza irá desaparecer, os teus filhos irão crescer e partir e tudo o que pensaste ser a tua vida irá azedar; a única coisa com que podes contar é contigo mesma e com o teu talento.”
“O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio reconhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história...”
“O Homem tornou-se arrogante, prepotente e insensível! Apesar de todos os avisos, o Homem não hesitou em mergulhar numa existência de imoralidade sem limites! Uma existência em que os abastados arrancam o pão da boca dos mais pobres! Uma existência em que os fortes enxovalham os mais fracos! Uma existência onde o amor pelo próximo é considerado uma fraqueza! E agora, é chegado o dia de fazê-los regressar a uma condição de proba humildade. Não percebes, Michael? O espírito do Homem foi infectado pelo vírus da corrupção e da crueldade. E o Apocalipse, por mais brutal e tenebroso que seja... é a única forma de combater essa infecção.”
“Só quando alguém teu conhecido morre é que começas a apreciar a vida e o que ela significa”