“Quer dizer, era de esperar que o senhor dos titãs tivesse aprendido suas lições eras atrás, quando foi derrubado pelos deuses. Era de se esperar que ser picado em um milhão de pedacinhos e jogado na parte mais escura do Mundo Inferior lhe desse uma dica sutil de que ninguém o queria por perto. Mas não.”
“Universo interior!Eram grandes palavras, essas, e Jaromil ouviu-as com uma extrema satisfação. Nunca se esquecia de que coma idade de cinco anos era já considerado como uma criança excepcional, diferente das outras; o comportamento dos seus colegas de turma, que troçavam da pasta ou da camisa dele, confirmara-o, do mesmo modo (por vezes, duramente), na sua singularidade. Mas, até aqui, essa singularidade não fora para ele mais do que uma noção vazia e incerta; era uma esperança incompreensível ou uma incompreensível rejeição; mas agora, acabava de receber um nome: era um universo interior original; (...)o que lhe sugeria a ideia confusa de que a originalidade do seu universo interior não era o resultado de um esforço laborioso mas se exprimia por meio de tudo o que passava fortuitamente e maquinalmente pela sua cabeça; que lhe era dada, como um dom.”
“Quando montava o Salomão, a subhro sempre lhe havia parecido que o mundo era pequeno, mas hoje, no cais do porto de génova, alvo dos olhares de centenas de pessoas literalmente embevecidas pelo espectáculo que lhes estava sendo oferecido, quer com a sua própria pessoa quer com um animal em todos os aspectos tão desmedido que obedecia ás suas ordens, fritz contemplava com uma espécie de desdém a multidão, e, num insólito instante de lucidez e relativização, pensou que, bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante.”
“Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a História, a verdade.”
“Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava de, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente - tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre.”
“Há várias maneiras de ser condenado à morte. Ah! o que eu não daria naquele momento para estar na prisão ao invés de estar ali, eu, cretino! Para ter, por exemplo, quando era tão fácil, previsível, roubado alguma coisa, em algum lugar, quando ainda era tempo. A gente não pensa em nada! Da prisão a gente sai vivo, da guerra não. O resto é lero-lero.Se pelo menos eu ainda tivesse tempo, mas não tinha mais! Não havia mais nada pra roubar! Como seria agradável uma prisãozinha sossegada, é o que pensava, por onde as balas não passassem! Não passam nunca! Eu conhecia uma prontinha, ao sol, bem protegida! Um sonho, a de Saint-Germain, mais exatamente, tão perto da floresta, eu a conhecia bem, volta e meia passava por lá, antigamente. Como mudamos! Na época eu era uma criança, ela me metia medo, a prisão. É que eu não conhecia os homens. Nunca mais acreditarei no que dizem, no que pensam. É dos homens e só deles que se deve ter medo, sempre.”
“(...)sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações. faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.”