“Se pois, é pela imagem, e não por si mesmo, que o esquecimento se enraíza na memória, foi preciso que se achasse presente para que a memória pudesse captar a imagem. Como pôde o esquecimento, quando estava presente, gravar a sua imagem na memória, se ele, com sua presença apaga tudo que lá encontra? Enfim, seja como for, apesar de ser inexplicável e incompreensível o modo como se enraíza de fato, estou certo de que me lembro do esquecimento, que nos varre da memória tudo aquilo de que nos lembramos.”
“Se nós retemos na memória aquilo que nos lembramos, e se nos é impossível, ao ouvir a palavra esquecimento, compreender o que ela significa, a não ser que nos lembremos, conclui-se que a memória retém o esquecimento.”
“A vida é cruel por ter inventado a memória. Como os velhos que recobram em matizes suas lembranças mais antigas, à beira da morte minha memória gravita em torno do sol, e como ele clareia tudo! Tudo é presente, nada está perdido. É como uma força oculta que nos impele para nos estimular de novo: diante da evidência de que não mais haverá futuro, o passado se amplifica, suas raízes engrossam, tudo em mim é rizosfera, as cores se cristalizam sobre cada estrato, a mais insignificante imagem toca o seu absoluto, o coração bate em crescendo.”
“Por que é que a verdade gera ódio? Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz que é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa querem que o que amam seja verdade. Como não querem ser enganados, não se querem convencer que estão em erro.”
“Não podeis ser obrigado, por Vossa força, seja ao que for, porque em Vós a vontade não é maior do que o poder. Porém, seria maior, se Vós fôsseis maior que Vós mesmo. Mas a vontade e o poder de Deus são o próprio Deus.Para Vós que tudo conheceis, existe acaso alguma coisa imprevista? Nenhhuma natureza existe, senão porque a conhecestes. Para que proferimos nós tantas palavras a fim de comprovar que a substância de Deus não é corruptível, já que, se o fosse não seria Deus?”
“O Vosso servo mais fiel é aquele que não espera nem prefere ouvir aquilo que quer, mas se propõe a aceitar, antes de tudo, a resposta que de Vós ouvis.”
“Como era miserável e como procesdestes para que sentisse a minha desgraça, naquele dia em que me preparava para declamar louvores ao imperador! Neles mentiria muito, e os que o sabiam apoiavam o mentiroso! Meu coração agitava-se com estes cuidados e ardia na febre dos pensamentos corrompidos, quando, ao passar por um bairro em Milão, reparei num pobre mendigo, já ébrio, julgo eu, mas humorístico e alegre. Gemi e falei aos meus amigos que me acompanhavam das muitas angústias provenientes das nossas loucuras. Com todos os esforços [...] só queríamos chegar à alegria segura, aonde já tinha chegado, primeiro de nós, aquele mendigo e aonde nunca talvez, chegaríamos. Dirigia-me para aquilo mesmo que ele já alcançara com poucas moedas pedidas de esmola, isto é, para a alegria e felicidade temporal, dando voltas e rodeios trabalhosos. Não possuía o ébrio, é certo a alegria verdadeira. Mas, com tais ambições, eu a buscava muito mais falsamente. Ele, com certeza, andava alegre e eu preocupado; ele vivia seguro e eu cheio de inquietações.”