“Era estranho, outrossim, que ele sentisse um árido prazer em seguir até o fim as rígidas linhas da doutrina da Igreja e penetrasse em tétricos silêncios apenas para ouvir e sentir mais profundamente a sua própria condenação. A frase de São Tiago que diz que aquele peca contra um mandamento se torna culpado por todos pareceu-lhe, no começo, oca, até que começou a sondar a treva do seu próprio estado. Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais tinham saldado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos vícios não podia atingir; caluniosas murmurações contra os piedosos; voracidade em sentir os alimentos, a estúpida raiva em que ardia e no meio da qual examinava o seu tédio; o pântano de indolência espiritual e corporal dentro do qual todo o seu ser estava atolado.”

James Joyce

James Joyce - “Era estranho, outrossim, que ele sentisse...” 1

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“Dormiu sem o saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama e que estava deitada de costas do lado esquerdo, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo no outro lado. Pensando em sonhos, pensou que nunca mais poderia dormir assim e, em sonhos, começou a soluçar sem mudar de posição no seu lado, até muito depois de terem acabado de cantar os galos, e acordou-a o sol indesejável da manhã sem ele.”

Gabriel Garcia Marquez
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“Ignorarei para todo o sempre de que modo ela passava os dias, onde se escondia, qual era a sua companhia durante os meses de Inverno aquando da sua primeira fuga e no decurso das pouca semana de primavera em que escapulira de novo. Eis o seu segredo. Um pobre e precioso segredo que os carrascos, os decretos, as autoridades ditas de Ocupação, o depósito de presos, as casernas, os campos, a história, o tempo –tudo o que nos macula e destrói – não puderam roubar-lhe.”

Patrick Modiano
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“Todos nós temos necessidade de ser olhados. Podemos ser classificados em quatro categorias, segundo o tipo de olhar sob o qual queremos viver.A primeira procura um olhar de um número infinito de olhos anônimos, em outras palavras, o olhar do público.(...)Na segunda categoria, estão aqueles que não podem viver sem o olhar de numerosos olhos famliares. São os organizadores incansáveis de coquetéis e jantares. São mais felizes que os da primeira categoria, que, quando perdem o seu público, imaginam que a luz se apagou na sala de suas vidas. É o que acontece a todos, mais dia, menos dia. As pessoas da segunda categoria, pelo contrário, sempre conseguem arrumar quem as olhe. (...)Em seguida, vem a terceira categoria, as dos que têm necessidade de viver sob o olhar do ser amado. A situação deles é tão perigosa quanto a daqueles do primeiro grupo. Basta que os olhos do ser amado se fechem para que a sala fique mergulhada na escuridão.(...)Por fim, existe a quarta categoria, a mais rara, a dos que vivem sob os olhares imaginários dos ausentes. São os sonhadores. Por exemplo, Franz. Se ele chegou até a fronteira do Camboja, foi unicamente por causa de Sabina. O ônibus chacoalha na estrada da Tailândia e ele sente que os olhos de Sabina estão pousados sob ele.”

Milan Kundera
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“Devo acrescentar aqui uma observação psicológica: embora saiba muito pouco sobrea vida do Lobo da Estepe, tenho bons motivos para acreditar que foi educado por pais e professores bondosos, porém severos e muito devotos, desses que fundamentam toda a educação no ' 'quebrantamento da vontade''. Tal destruição da personalidade e quebra do desejo não foram conseguidas com aquele aluno, de cuja prova saiu mais insensível e duro, orgulhoso e espiritual. Em vez de destruir sua personalidade, conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo. Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira toda a genialidade de sua fantasia, toda a forçade seu poderoso pensamento. Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade, cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amálos,para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o "Amarás teu próximo!" estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo"; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.”

Hermann Hesse
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“O que é sensível tem de morrer pelo fogo, qual borboleta frágil da noite. E é por isso, diz Erika Kohut, que estes dois seres doentes à mais alta escala, isto é, Schumann e Schubert, irmanados pela partilha do mesmo prefixo, são os que têm um lugar mais próximo do meu coração dilacerado. Não o Schumann a quem já todos os pensamentos desertaram, mas o Schumann, mesmo mesmo antes disso ter acontecido! Uma unha negra antes disso! Ele já adivinha a deserção do seu espírito, já sofre com isso até aos seus vasos mais capilares, despede-se já da sua vida consciente, embrenhando-se pelos coros dos anjos e dos demónios, segura-se, porém, mais uma última vez, não mais possuidor da sua total consciência. Ainda um perscrutar nostálgico mais, o luto pela perda do bem mais precioso: ele próprio. A fase em que ainda se sabe o que em si próprio se perde, antes de renunciar por completo.”

Elfriede Jelinek
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